18 de out. de 2011

Quem São Os "brasileiros Invisíveis" ?

     Alguns anos atrás, um grupo de notáveis gaúchos, formado por personalidades, modelos, comunicadores, vestiu-se com o uniforme dos garis que trabalham para o Departamento Municipal de Limpeza Urbana e espalhou-se pelo centro de Porto Alegre. O objetivo era comprovar, na prática, que há uma parte da sociedade sempre invisível, vivendo à margem de tudo. As pessoas passam ao lado e são incapazes de olhar firme nos olhos daquele varredor (ou do porteiro, escolha a função que você quiser). Entre os escolhidos estava a ex-miss Daisy Nunes, um rosto conhecido dos gaúchos. No fim do dia, nem ela, nem seus parceiros de aventura tinham sido percebidos. Vestidos com os uniformes de garis, todos continuaram invisíveis – ninguém se preocupou em prestar atenção no que faziam.

    Vik Muniz, um dos artistas plásticos brasileiros mais conhecidos e valorizados no Exterior, sabia disso ao deixar o conforto de sua vida nos Estados Unidos e se aventurar pelo inacreditável Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, o maior lixão aberto no mundo (foto). Preocupado com questões sociais, ele estava disposto a dar rosto e voz àquelas pessoas que vivem do que a sociedade descarta, a mesma que ignora solenemente (e não perde um minuto de seu confortável sono por isso) como vivem os integrantes das classes da parte mais baixa do estrato social. Fazem parte da população invisível.
Vik mergulhou tanto na vida daquela gente que seu trabalho resultou em um forte candidato ao Oscar. Isso mesmo: a vida dos catadores deu origem ao excepcional documentário Lixo Extraordinário (veja trailer logo abaixo), que deveria ser programa obrigatório para todos os brasileiros. É uma lição espantosa de humanidade, coragem, honestidade, sacrifício e disposição de encarar e vencer todos os desafios, por mais assustadores que possam parecer.

    O filme nasceu de um projeto do produtor britânico Angus Aynsley, que deu a tarefa à diretora Lucy Walter. Aqui no Brasil, a missão de acompanhar Vik coube à produtora O2 Filmes, de Fernando Meirelles, ao documentarista carioca João Jardim e à editora pernambucana Karen Harley. O trabalho deles e a disposição de Vik de entrar na intimidade dos catadores resultaram em um trabalho notável, de sensibilidade e de uma sempre presente crítica social. Não deixe de assistir.

     É comovente ver Tião lembrar passagens do livro O Príncipe, de Maquiavel, que ele recolheu no lixo e leu em casa, a ponto de lembrar das lições e dos personagens, ou de trechos da obra de Nietzsche. Ou conhecer os planos de Zumbi de montar uma biblioteca com os livros recolhidos na área. Ver mulheres que entraram no lixão porque os maridos perderam o emprego ou ouvir outras falando com saudade dos filhos. Ou então, prestar atenção nas palavras de seu Valter, que, depois de 28 anos de trabalho no lixão, dá uma lição de consciência ecológica, falando do desperdício, da falta de cuidados e da pouca preocupação da pessoas com o ambiente. “Me mostram que é apenas uma latinha e eu digo que 99 não é cem”, diz. Ou seja: cada um deve fazer sua parte para não agravar os problemas. Seu Valter e seu discurso ensinam muito. Muitos deles viraram obras de arte (foto) e tiveram suas imagens expostas com sucesso em galerias daqui e do Exterior. A cena em que eles visitam o Museu de Arte Moderna é inesquecível.
     A exemplo daqueles catadores, que separam 200 toneladas por dia de lixo para reaproveitamento pelas indústrias, Vik também nasceu em família pobre, lutou para ter uma vida digna e ganhou espaço em galerias de todo o mundo com obras feitas com materiais incomuns, como chocolate, açúcar e lixo. Ele filmou e fotografou os personagens e, a partir daí, montou suas peças. A de Tião estirado em uma banheira (foto) foi vendida em leilão em Londres e todo o dinheiro foi destinado ao Gramacho, que ganhou escola, biblioteca, apoio social. É de Tião, por sinal, uma declaração cheia de orgulho feita no Programa do Jô. Esta:
- Permita-me uma correção. Nós somos recicladores, trabalhamos com material reciclável. Lixo é tudo aquilo que não se aproveita.
     Acima de tudo, o filme escancara o egoísmo de parte da sociedade, a mesma que nem sempre entende a importância de programas como o Bolsa Família, cotas nas universidades ou bolsas para estudantes, que dão suporte e esperança para quem nunca teve nada. Vik deu àquelas pessoas que lutam dia a dia pelo lixo que produzimos a solidariedade que anda em falta nestes complicados tempos de valores descartáveis. Lixo Extraordinário pode até não ganhar o Oscar (afinal, a Academia se escandalizou com o realismo do excepcional Cidade de Deus), mas é uma aula de humanidade – e uma obra que mostra nossos heróis invisíveis.

Dr° Sérgio Eduardo

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