Sábado de um típico camponês na França do século 10 começa às 5 da manhã. Ele, a esposa e os quatro filhos acordam em sua casa de um único cômodo, comem mingau de pão e dão início à labuta. O pai e os mais velhos, de 12 e 14 anos, vão para o campo - a colheita de trigo e cevada está atrasada. A família passou os dois dias anteriores cumprindo o trabalho obrigatório nas terras do senhor feudal. Há muito o que fazer. A mãe e os mais novos, de 6 e 8 anos, vão lidar com a horta e as galinhas. Todos fazem uma rápida pausa para comer (sempre que possível, peixe). O batente só termina quando já está escuro. Eles dormem juntos, sobre um amontoado de palha, iluminados por velas de sebo e aquecidos por uma pequena fogueira no centro do cômodo. Descansam felizes. O dia seguinte é o único da semana em que a rotina árdua muda um pouco: seguem o comando dos sinos e vão à missa. Rezam por suas almas e são orientados mais a temer o diabo que a adorar a Deus.
Assim viveram, durante dez séculos, 90% dos habitantes do Velho Continente. Do ponto de vista deles, a Idade Média foi uma época de contrastes sociais profundos, violência, doenças (a metade dos bebês não chegava aos 2 anos) e tímido avanço tecnológico, à mercê das intempéries da natureza. Nessa era de preces, pão e fuligem, as pessoas mais simples morriam cedo, comiam quando dava e se submetiam às determinações dos senhores e dos padres. Já a nobreza construía castelos, cobrava impostos pesados e devorava até 9 mil calorias diárias. Um singelo botão de ouro no vestido de uma dama equivalia a 140 dias de trabalho de um camponês.
A Idade Média é delineada pouco antes da data oficial de origem: 4 de setembro de 476, quando o imperador Rômulo Augusto é destronado. Desde os anos 300, a falta de controle de Roma sobre as províncias dava margem para as constantes invasões dos bárbaros - os estranhos povos do norte que não falavam latim. Moradores de áreas isoladas estavam sujeitos a ondas de saque permanentes. Na falta de um governo central forte, o jeito foi pedir ajuda aos ricos mais próximos. "No século 4, começa a surgir uma relação de dependência. Os camponeses oferecem tudo o que têm: a força de trabalho. Em troca, conseguem viver com o mínimo de paz", diz Paul E. Szarmach, diretor da Medieval Academy of America. Essas relações são mediadas por códigos de honra, obrigações claras, e acabam disseminadas. Normas de conduta são herdadas da seita judaica que havia se desenvolvido e ocupado corações e mentes do império. Entre os legados romanos incorporados pela Idade Média, o cristianismo é o mais marcante. De reis a agricultores, é mandatório seguir os ditames da Igreja.
Osteiros se espalham pelo continente e logo se configuram como o grande (e único) centro de saber. "Em tempos sem imprensa e de ampla maioria de analfabetos, as bibliotecas dos mosteiros são um instrumento de controle. Mesmo nobres ricos só têm acesso a obras consideradas aceitáveis", afirma Patrick Geary, historiador da Universidade da Califórnia. Rica, aliás, também é a Igreja. Prospera com o dízimo e doações de terra, o que permite a proliferação das construções. As abadias funcionam como abrigo para os desvalidos (veja à dir.). E para os enfermos, claro. As doenças são vistas como uma manifestação do mal. Os tratamentos consistem em emplastros (o mais comum é feito de mel e cocô de pombo), sangrias e orações. A ciência médica é rejeitada, e os conceitos, oriundos dos gregos, não identificam que enfermidades típicas do período - disenteria, ergotismo (envenenamento por cereal contaminado), peste bubônica - resultam das más condições de higiene e saneamento. O camponês medieval toma banhos semanais (mais do que muitos europeus do século 19), mas dorme com os animais dentro de casa e faz suas necessidades ao relento. Mesmo os castelos só têm uma privada; não há tratamento de dejetos.
Os religiosos trabalham em suas próprias plantações. Mas nem o serviço braçal muda certos hábitos. São Jerônimo (347-420) dizia que quem aceitou a fé e se lavou no sangue de Cristo não precisava mais aguar o corpo. Por isso os monges fugiam à regra e não tomavam banho mais que cinco vezes... por ano. São eles os maiores produtores de vinho, cerveja e queijo. Em dias comuns, consomem 1,5 quilo de pão (muitos usam grandes fatias no lugar de pratos), com 200 gramas de carne e queijo, e 1,5 litro de vinho ou cerveja. Essa dieta de 6 mil calorias, sem saladas, não ajuda muito a melhorar a média de vida da época: 35 anos. Nada disso quer dizer que alguém estivesse livre das crises de fome, provocadas principalmente por variações climáticas inesperadas. Um período de aquecimento global atingiu o planeta entre 800 e 1300, o que, no geral, favoreceu a produção de alimentos. Mas o desabastecimento existia e atingia até os abastados. O camponês era mais vulnerável, comia menos. "Por incrível que pareça, entretanto, os pobres comiam muito melhor do ponto de vista nutricional, com maior variedade", diz Ricardo da Costa, medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo.
Exceção feita a poucos personagens, como Carlos Magno (747-814) e Luís IX (1214-1270), os reis têm pouquíssimo poder para além dos muros de suas propriedades. Entre os séculos 9 e 12, a Europa se divide em cerca de 60 feudos. São os senhores feudais que controlam a vida dos arredores. A partir de suas casas fortificadas, que evoluem até se tornar castelos no século 10, eles vivem cercados por empregados. O camponês passa a metade de seu tempo útil trabalhando no chamado manso senhorial, a área de plantio do latifúndio. Ele mesmo vive e cultiva seu alimento nos arredores. Tudo o que planta ali é seu, mas não tem direito a manter em casa fornos ou moinhos. Para usá-los, paga aluguel na forma de produtos que colheu nas terras sob seu controle, patrimônio do senhor. É dele, aliás, entre outras benesses, a prerrogativa de desvirginar as filhas recém-casadas de seus súditos. Ele provê a segurança da comunidade; promove o treinamento de cavaleiros, torneios festivos e a organização das tropas para os combates (veja à dir.). "Nas cruzadas, camponeses e nobres combatiam lado a lado, mas os primeiros eram sempre infantes e estavam em geral mal armados, ao passo que os nobres lutavam nas tropas de elite (a cavalaria) e dispunham dos melhores armamentos", diz Marcelo Cândido da Silva, coordenador do Laboratório de Estudos Medievais da USP. Não só as cruzadas tiram o sangue de cavaleiros e camponeses. As guerras entre os feudos são recorrentes.
E todas as muitas vítimas desse sistema, as maiores são as mulheres. Sobre Eva, o teólogo Tertuliano (155-122) já afirmava: "Tu és a porta do diabo, tu consentiste na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina". Santo Agostinho (354-430) lamenta a forma como as pessoas vêm ao mundo: "Nascemos no meio da urina e das fezes". E o abade Odon de Cluny (878-942) adverte: "Se os homens vissem o que está debaixo da pele, a vista das mulheres dar-lhes-ia náuseas. Então, quando nem mesmo com a ponta dos dedos suportamos tocar um escarro ou um excremento, como podemos desejar abraçar esse saco de excrementos?" Nada disso, porém, impedia os religiosos de fornicarem. Muitos padres tinham esposas. O celibato só seria obrigatório a partir do século 12 e, mesmo assim, demorou décadas para ser plenamente incorporado.
Limitadas a manter a casa e procriar, as mulheres são orientadas a aceitar os desejos do marido sempre que ele queira. Mas só quando permitido: períodos de abstinência e menstruação restringem o sexo a 93 dias por ano. O coito só deve ser realizado em uma única posição, de preferência com o casal vestido ou com um lençol furado separando-os. A esposa do senhor feudal não tem maiores liberdades. Passa boa parte do dia em quartos fechados, a fiar, acompanhada somente por criadas. As saídas para os jardins são monitoradas de perto. Afinal, é ali que se realizam os encontros furtivos. As escapadas de jovens apaixonados dariam origem à literatura mais famosa do medievo, a do amor cortês.
As últimas décadas, a Idade Média vem sendo reavaliada pelos historiadores. Muitos deles consideram que o quadro de fome, doenças e guerras não elimina suas vantagens relativas. "Se pensarmos no servo, forma típica do camponês atrelado ao solo na Idade Média, veremos que há um ganho para esse indivíduo em relação ao escravo do meio rural na Antiguidade", afirma a historiadora Cybele Crossetti de Almeida, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Essa visão negativa é uma criação dos autores dos séculos 14 e 15, sobretudo na Itália, interessados em destacar a diferença entre o período em que viviam e o passado imediatamente anterior", diz Marcelo Cândido. Mas isso não significa, como aponta o professor, que faça sentido retomar o conceito que o romantismo do século 19 ajudaria a difundir: o de que aquela época foi marcada por homens fortes e guerreiros, convivendo em harmonia com a natureza e seguindo códigos de honra e ética muito sólidos. Ainda assim, os estudiosos hoje defendem, por exemplo, que algumas normas da Igreja podiam ser dribladas ou ignoradas. "Muitas prescrições simplesmente não eram seguidas, como era o caso da proibição da alquimia e da astrologia e a restrição a consultar médicos judeus, em geral os melhores de então", afirma Cybele. "O filósofo Raimundo Lúlio, por exemplo, se queixa, em pleno século 13, que o mundo é pouquíssimo católico! Em muitos casos, havia um catolicismo de fachada e o povo não tinha muita noção dos dogmas de sua fé", diz Ricardo Costa.
O período medieval deixou, sim, seus legados (veja abaixo, à dir.). Nele se desenharam os contornos dos principais países europeus válidos ainda hoje. A experiência de autonomia política dos feudos, apesar da influência da Igreja, daria origem ao estado moderno laico. A lista de heranças inclui ajustes no direito romano - que abusava da pena de morte, amenizada por influência cristã. De toda forma, algo é inegável: para quem fazia parte da imensa maioria pobre, a vida era dura e as perspectivas de futuro não iam muito além de conquistar, com sofrimento e suor, uma vaga no Paraíso que nunca teriam na Terra.
Dr° Ricardo Costa Historiador
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